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M​ú​sica para um Cremat​ó​rio

by Música para um Crematório

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1.
I 31:38
No fim da linha do corvo morri. Mas antes de morrer vivi, exactamente o mesmo sítio onde viria a morrer. Era um sítio diferente, ou melhor, estar vivo fazia-o diferente, estar morto fá-lo normal. Habito uma pequena cela agora. Tem vista para o mar, mas o mar não a vê. Tem, portanto, esta relação injusta. Quando estava vivo, via o mar aprisionado, tal como aprisionado a ele estava. Mas ele ganhava. Curiosamente ganhou sempre, mesmo quando o fechei entre muros fortes ele á permaneceu, esperando o dia em que se cansassem. Ainda não se cansaram. Antigamente (já me parece uma década) visitei estes espaços apagados de vida ou morte. Ainda não sabiam nem uma nem outra e sinceramente não sei se mais felizes assim o eram. Cheguei vindo de cima, tal como ele resolveu começar a existir. Assim o abordei lentamente, mecanicamente, silenciosamente. Um passeio de aceleração zero até mergulhar. Inicialmente e ao longe parecia apenas uma grande pedra, com o tempo percebi-a oca, desprovida de sentido, prepotente ou cruel até. Mas não era em nada disto que se diferenciava. Pois muitos espaços existem com estas características, e muitos deles conheço. De forma algo estranha sinto que o facto de os conhecer, de ter vivido estes sítios de aceleração zero, contribui largamente para a disparidade de sentidos que este sítio me revela agora. Ainda assim penso que está mais estável agora. Cheguei vindo de cima. Estava sozinho e assim permaneci durante uma boa manhã. O sol fê-la boa. Circulei em torno deste grande vazio de sol e mar, não sei quantas voltas dei. Não foi algo que me tenha esquecido, não seria possível desaparecer da minha memória o exacto número de circunvalações que inaugurariam a minha presença aqui. Simplesmente não contei, nunca chegou a ser registo. Ao contrário dele, que obviamente sabe quantas foram. Este grande forte vai sussurrando no betão das suas paredes, interiormente nos fala muito baixo. O que fala não é de agora. Já o diz desde que me lembro e não me lembro. Antes da primeira e inaugural ideia que fixei no meu mole betão de rotatividade mil. Troquei quarenta vezes de corpo, nenhuma de mente. Diz-me que para além dos corpos disformes, dos volumes aparentemente tridimensionais ou das pequenas perfurações, se esconde na essência da matéria um grande grande vazio justificador de tudo isto. Ainda agora, depois destes anos ou sei lá… me parece paradoxal que seja o vazio desta enorme coisa, deste descomunal esforço, desta inumana criação, que contenha a mais segura e fechada mensagem. As paredes falam, mas quem lhe diz o que dizer? Não sou eu, nem fui eu. Lentamente encontraram por si mesmas a fonte, ou uma fonte. Para dizer a verdade, e prezando alguma precisão, nada sei sobre este referente vazio. A sua existência apresenta-se como a única e total das minhas certezas e não só… Na minha pequena cela mal ouço. Fui junto ao horizonte buscá-lo. Esse som/cheiro/linha. Aqui a paz é outra, muito diferente da minha pequena cela onde durmo. Sento-me de lado ou de costas para onde quero olhar. Parece que ele não quer que fuja demasiado. Não posso sair daqui, só devo lembrar-me que já pude. Abri uma porta de toque metálico e frio. Permaneceu aberta para não bater… aqui não me protege com seu pesado corpo. O vento trespassa com uma força aguda e cardeal. Ainda que não o segure, consegue-lhe orientar a brutalidade, dividi-la em quatro. Foi das suas primeiras lições. Aprendi que ainda que aparente seriamente, nada é indiferente, nada aqui é igual. Eu é que sentia muito pouco. E o som deste poderoso vento… que o tem por causa dele, é tão alto e tão forte que tive de fechar a espessa porta. Ao fechar, ao inaugurar este silêncio comparado, a porta rugiu um misto de dor e coragem. Não mais a ouvi pronunciar-se, remetendo-se para o seu silêncio de porta, de pedaço de madeira morta, podia estar a putrificar boiando pelo grande e solarengo mar, mas ali estava expectante pelo chegar desse dia. Esta sala axial por momentos fez-se madeira solidária. Por três segundos precisamente. E agora no silêncio da sala, pode finalmente entrar o som que procurava, não trazido pelo vento, mas trazendo-o a ele mesmo. Um som que tem a pacífica força de uma maré, que tudo consegue destruir se assim decidir. Entrou por dentro de mim o som das infinitas subdivisões da superfície aquática. Queria contá-las claro. Queria apoderar-me do seu exacto valor quantitativo ou tonal. Mas todas estas informações me foram negadas. “Limita-te a presenciar o mundo, não querendo compreender.” Este abstracto som me disse isto.

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"Música para um Crematório" assume-se como uma narrativa sonora e lírica de um defunto que habita a sua última casa. Sujeito esse que é acompanhado incessantemente por uma parede de som que reúne o mar com este homem neste sítio que será o seu derradeiro.

Encontrarão explícitas neste projeto as forças que movem o Afonso no seu processo criativo, e que para nós na Umbria mal podemos esperar pelo que seguirá esta primeira mostra.

"No fim da linha do corvo morri.
Mas antes de morrer vivi, exatamente o mesmo sítio onde viria a morrer. Era um sítio diferente, ou melhor, estar vivo fazia-o diferente, estar morto fá-lo normal."

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por melhor barulho

credits

released February 21, 2021

Gravado no Black Sheep Studios a sete de Março de dois mil e vinte.

Composição - Afonso Patinhas;
Gravação, mistura e masterização - Pedro Janes;
Imagem - Gonçalo Spínola.

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