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1. |
Crise
03:54
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Cheira-me,
que anda por aí
– saltitante –
uma sala escura
descurada de mobília
cheira-me,
que nessa sala,
se acertam contas
que fogem ao fisco
por escassez de ranhuras
cheira-me
que é lá que se limpa
o sangue
que respinga:
dos talhantes;
dos amigos de salão;
dos maus vivants
das águas paradas,
em fossas
nas estradas –
que lhes mostram férias aliciantes
das vielas pútridas
e o seu cheiro a recreio;
das regalias ácidas do amor;
da deficiência crónica de um dia inteiro
do estalar prazeroso –
das molas,
do esfregar violento –
dos molares
dos marinados em cinzeiros
em casamentos dos outros e
do que fazes em feriados sem dinheiro
Nunca fui convidado,
nem me cheira que
alguma vez serei caso.
Rezo sim,
que esta sala seja
uma rede que recolha
das ruas
O pivete a desagrado
Vejo as horas passar,
acendo um contra o vento –
espero sentado
se vos deixar aqui
o que para eles
foi um ano
isto deixará
de ser
o que é
fica com um aspeto
alto, aflito e medonho
uma lamuria antiga
cantada sem peito ou barriga
por um cigano
que vai namorando
a distância
que vai namorando
a distância
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2. |
Para um amor IV
03:57
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Não há ninguém perto,
tudo o que há é um amor certo
quilómetros e quilómetros
estarei eu deserto?
Permanece dormido o medo
de um vulto de cidade
sozinho de férias no campo
o mesmo sobressalto,
o mesmo encanto,
a mesma oferenda
válida por um ano.
Serão os áridos da cidade?
a mesma insuficiência,
a mesma ingénua alegoria
de um amor que nunca chegará tarde.
Será crescer
a invasão e extinção
do que não te consigo dizer,
acatadas, esmurradas
pelo Sol e o seu desimpedido aparecer?
Será que quanto mais me estendo
mais é o que guardo?
E mais me oriento
por quilómetros (!)
e quilómetros (!)
e quilómetros
para onde quer que sacudas o cigarro
Sedenta, esta maldita viagem.
Para um amor
O deserto vê-se num dia e meio,
se sacudires a cinza sem jeito ou coragem.
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3. |
Separador I
01:03
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4. |
Herança
04:16
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Não te sentes mais leve
Com o que deixas no ralo da banheira? De manhã…?
Com o que só se espreguiça e acomoda
no ventre borbulhante da lareira?
Como uma freira vencedora e desimpedida
de férias da Igreja?
Ou como o moribundo que te mostra a faca,
te estraga o Café, graceja, encolhe-se e boceja?
De que te serve a falta de peso?
A liberdade e a ânsia de seres quem és,
Se te enjoam os reflexos espalhados pelos olhos de quem amas?
Se te enjoam os risos gordos das mulheres vizinhas
e das suas atreladas crianças?
Se te enjoa a incoerente e divina casualidade
com que se encaixam telhados e se distribuem janelas? Às dezenas.
Por colinas e lembranças.
Será por isso que o teu Avô,
começava o dia antes de tudo o resto,
com uma aguardente velha e amarela?
Como o mais astuto galgo de corrida,
Aplicado e curioso para como seria
sem dono
Pela Destruição da goela; Criado do seu Enjoo; Patrão e Abolidor da sua trela.
Será que nos seus últimos dias
lhe devias ter perguntado
Se a agonia corria brava na família?
Em vez de amedrontado num pano quente
Perguntar pelo Futebol e outras mazelas.
Falo do teu Avô pelas suas mãos trémulas, pela sua pele esticada e russa
Os lábios gretados com frieiras
E sendo essa a vestimenta, o uniforme da idade sem tutelas
Será que ele olhava para baixo, de manhã, na banheira
E se ria, para longe da demência?
Com a ideia
Com o desejo
frescos como o dia
de uma aguardente velha e amarela?
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5. |
Domingo
02:19
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o azul, o cinzento e o branco
o pobre esquema cromático dos domingos em família,
como uma lapa subnutrida,
agarra-se cansada e esfomeada
pelo resto dos teus dias
a areia relembra-te a carpete da sala
de defuntos com o teu nome – arisca,
o iodo arde e avisa-te
já devias ser feliz por esta altura
ao tentares acordar
os pulmões
reparas – estão cheios,
massacrados pelo que a semana lhes fez
os rochedos dormentes pelo calor
se neles adormeceres,
cumprirás o sonho
de caber nas mãos da tua mãe
inebriado pelo mar
o seu falso balanço
protegido da maré cheia
trarás contigo todo o sal nas veias,
as beatas que deixas para trás – enterradas
são os anos que já levas a mais.
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6. |
Separador II
00:52
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7. |
Fuga
01:30
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o desconsolo alarmante
de uma sala de espera vermelha
para lado nenhum
lá fora – um véu
de algodão amargo
esconde o rio,
pede-lhe que descanse
uma lâmina de ar fina
tortura macabra e esquarteja a sala,
e quem padece
da coragem míope de esperar
abre-se lá fora – no meio
do véu – uma estrada
iluminada pelo candelabro integrante
na montagem apressada deste calhau azul
o vermelho alerta-te
para o afundar da tua causa,
dos teus lemas pesados à flor da pele
e de purgas ao luar
sobra-te no corpo tenso
o resto dos teus dias
preso à tua espinha inútil
e à vontade de dançar
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8. |
Torel
02:50
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os amigos de revista
reúnem-se em todas as tardes frescas
no mais apetecível jardim
morrem de inveja os pássaros
os trabalhadores da câmara
por não terem nascido assim
aos amigos cabe-lhes
o contentamento e a concordância
de mãos entrelaçadas
do miradouro a um efémero sem fim
em mim vão pousando e beijando as moscas
o suor de dois dias,
de tantos outros que virão
por fés leprosas e romances de marfim
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9. |
Valência
04:19
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Quando me deitei,
sabia que ia ser
castigado
No intervalo dos sonhos,
no canto do ringue,
animava-me com a brisa
O resultado empatado.
Sempre que vencia a corda
de lençol na boca
com a língua,
Saboreava no seu teto
a promessa,
o mérito do prémio
Meio dia queimado.
Quando voltei a mim,
já o dia ia a meio
e ainda não tinha celebrado
Algo me disse
que tinham levado
A outra metade emprestada
Levem-na de bom grado.
Não me assustam
as coisas mortas
O desemprego
O lavatório atolado
Como eu me governo
Entre segredos de Estado
Como sobreviver a um Inverno
Como lhe passar ao lado
Os soluços da Ciência
A sorte de criança do Acaso
Mas assustam-me
As paixonetas que te apanham
sejam elas cancros bonitos,
ou um resfriado
Despedir-me do Sol
E que já fora de horas,
o meu último cigarro
só arda de um lado.
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10. |
Separador III
00:53
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11. |
Três Noites
06:21
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Foges da sala para a varanda
de qualquer um dos teus ambíguos
Dizes que esta é boa...
Dizes que é só por um bocadinho!
Sais do buraco
e só vês mais buracos…!
Mais!
Mais iguais ao teu!
Serão todos libertos e arejados
quanto mais quis cavar a rameira pelo plebeu!
No cemitério mutante e moderno...
Tão libertos quanto o teu!
E os amores!
Que te distraiam!
Que te desviem o instinto
dos semáforos e do barulho!
Do fervor de pertenceres a mais alguém!
Alguém que te dê a mão!
Que te beije sem desdém!
Que quando ganires não solte
nem gemido nem grunhido!
Somos todos turistas amadores!
Todos na fila para visitar!
O paciente com o tórax aberto!
(impaciente até à morte!)
Deixa-o ver como ficou tapado o buraco!
Mesmo que só mude a vista!
Mesmo que só mude a visita!
Arranca os membros
que ficaram demodé em protesto!
E protesta rapaz!
Nem que seja pelas raparigas!
Que elas te vejam e suspirem!
de peito cheio teso pela vítima da moda política!
Teso pela genica de ter genica!
Hás-de esbarrar na morte!
Sortudo!
Se estiveres distraído
cais nas mãos aliviadas da tua mãe
e do seu derradeiro marido!
Bastardo!
Mas não te arrelies...
Eu visito-te!
Eu visito-te aos sábados
por descargo de consciência amiga parasita!
Para que a cautela que tu deixas seja distribuída!
Pelo mau operário!
Pelo bom burguês!
E aconselho-te...
Toca na campainha do teu Senhor uma última vez!
Fala com ele manso, mansinho!
Desdobra-te como aprendeste!
Diz-te bom menino!
Que eu hei de arranjar tempo!
Que eu hei de tirar a merda das botas!
E visito-te e pernoito tal disse à tua magra mãe!
De sábado para domingo!
Como um fiel ambíguo!
Cheira-me a crise
Cheira-me a crise
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umbria Lisbon, Portugal
editora
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